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sexta-feira, 17 de junho de 2011

Para terminar a semana, temos a crônica do aluno Samuel. Dessa vez, ele nos conta sobre sua relação com a música em si e critica seus caminhos no país. Bom fim de semana!!!

A Música e Eu

Reminiscências



Minhas relações com a música, até onde minha memória alcança, 
iniciam-se com um fato que eu considero extraordinário.
Corria  o ano  de  1949,  ou  talvez  o  de  1950;  tinha  então
uns sete ou oito anos de idade. Sempre após o almoço, por volta das
treze  horas,  mamãe  ligava  o  rádio,  sintonizando  a  Rádio
Nacional,  para  escutar novelas  radiofônicas,  logo após o  término
do “Repórter Esso” – famosíssimo.  O fundo musical daquelas novelas
era  sempre  com a utilização dos  clássicos do  século  XIX, mais do
que com os populares, com o objetivo de impressionar os ouvintes. E,
acreditem,  conforme  os  enredos  do  radioteatro  causavam mesmo
impactos - pelo menos comigo. Em uma das novelas, contando uma
história espírita, utilizaram o primeiro movimento de “Quadros de
uma  Exposição”,  após  o  “Promenade”,  a  pintura  “Gnomus”    era
impressionante como nos levava a imaginação para “ver” o saltitar
das entidades grotescas. A música é do compositor russo Mussorgsky.
O  mais  importante  é  o  que  lhes  passo  a  narrar:  “Estavam
executando  um  solo  de  violino.  Então,  segurei  um  instrumento
invisível, apoiei-o em meu ombro esquerdo,  firmei-o com o queixo,
com a mão direita  sustentei o arco, também invisível, e comecei a
acompanhar  o  som  que  saia  do  radio,  com  movimentos  de  um
violinista  exímio.  Vejam  bem,  naquela  época,  ainda  não  havia
televisão; eu nunca tinha visto alguém tocar violino”. As conclusões
deste fenômeno, eu deixo por conta de vós outros.
Bem,  quando  meus  genitores  souberam  do  ocorrido,
resolveram  presentear-me  com  um  violino  clássico,  bem  velho.  A
mamãe  logo providenciou para que eu  tomasse aulas particulares
de piano – o que não tinha nada a ver – tanto que após a iniciação
musical  acabei  por  rejeitar  o  piano.    O  papai  procurou  por  um
professor  de música  versado  no  violino    uma  dificuldade  numa
cidade  provinciana  no  interior  do  norte  do  Estado  do  Rio  de
Janeiro – Campos dos Goitacás – que nem escola de música possuía.
Encontrou um alfaiate que se dispôs a ensinar-me. Logo no início,
ele  percebeu  que  eu  precisava  educar,  tecnicamente,  a  audição.
Orientou-nos  para  tomar  aulas  de  solfejo,  indicando  uma  igreja
protestante que estava a  formar um orfeão com  jovens de boa voz.
Fui  matriculado  e  comecei  a  participar  das  aulas  de  solfejo.  O
professor era bom e paciente. Ensinou-nos a ler a pauta musical.
O difícil era ler a nota e emitir o som correto – este era o objetivo do
cursinho. Um dia,    estava anoitecendo,  logo após  o  término da
aula, o maestro pediu-me para não ir embora, pois o Pastor queria
conversar comigo. Aguardei por bem mais de meia hora, até que o
Pastor  requereu a minha  entrada no  templo. Encontrei um grupo
de  senhores  de  terno  preto  que  olhavam  para  mim  com
curiosidade.  Começaram  por  fazer  perguntas  que  até  a  presente
época não  consigo  ter  plena  compreensão,  pois nada  tinha a  ver
com  o  meu  interesse  de  aprender  a  tocar  violino.  O  final  da
conversa  tinha  a  intenção  de me  converter  àquela  religião  e  ser
batizado. Hoje, julgo uma coação com uma criança de apenas oito
anos de idade. Acabei por chegar a casa, após uma caminhada de
vinte minutos, por volta das dezenove horas. Minha mãe  já estava
aflita  e  angustiada;  e  eu muito mais  do  que  ela.  Consequência:
nunca  mais  coloquei  os  pés  naquela  escolinha,  sufocando  uma
provável carreira musical. 
Passado  alguns  poucos  anos,  eu    com  treze  anos  de
idade,  esquecido  de  qualquer  vocação  musical,  testemunhei  o
interesse de minha  irmã  por aprender o acordeão, que estava  em
moda  naqueles  idos.  Geralmente  as  moças  das  classes  mais
abastadas  optavam  pelo  piano.  Como  este  tem  custo  elevadíssimo,
ficou  mesmo  com  a  sanfona.  Todavia  a  maninha  não  se
entusiasmou  o  bastante  para a  continuidade dos  estudos; acabei
por  demonstrar  o meu  interesse musical  nato  e  fiquei  senhor  do
instrumento  por alguns anos    creio  que até a  véspera do  serviço
militar  (a  partir  daí  nunca mais  toquei  no  acordeão).  Tomava
aulas  particulares  com  uma  professorinha  muito  paciente  e
naturalmente  simpática.  Eram  aulas  práticas,  que  me
possibilitavam  executar  as musicas  lendo  a  pauta.  Uma  das  que
mais me  encantou  foi  o  tango  La  Cumparsita”.  Outra  era  uma
canção  russa  intitulada  “Olhos  Negros”,  que  meu  saudoso  vovô
cantarolava em russo – ele era polonês e servira no exercito do Czar
durante a primeira grande guerra. Havia também uma valsa com
o  titulo  “Danúbio  Azul”,  resumida  em  poucos  compassos.  Enfim,
estou  lhes  expondo  o meu  contato  com  a música  universal    um
encanto mágico. 
Desde  criança  e  durante  a  adolescência  e  juventude,
minha  atenção  se  prendia  ao  que  hoje  podemos  intitular  de
clássicos populares. Não somente pelas belas melodias como também
pelas letras extremamente poéticas e, também filosóficas, das quais
darei  alguns  exemplos,  que  a  atual  geração  talvez  nem  tenha
conhecimento. Vejamos:  
- Da primeira metade do século passado:

     1 – Compositor: Catulo da Paixão Cearense
     Música: Flor Amorosa 
     Cantor: Francisco Carlos
  
     Poema:
     1ª estrofe:
Flor amorosa, compassiva, sensitiva,
Vem; porque
É uma rosa orgulhosa, presunçosa,
Tão vaidosa.
Pois olha a rosa tem prazer em ser beijada,
É flor, é flor...
     - Última estrofe:
Oh, por que juras mil torturas,
Mil agruras, por que juras?
Meu coração delito algum por te beijar
Não vê, não vê, só por um beijo,
Um gracejo, tanto pejo.
Mas por quê? 

     Música: Luar do Sertão.
     Cantor: Paulo Tapajós.
     Poema: 
     1ª estrofe:
Não há, ó gente, oh não
Luar como este do sertão...
Oh que saudade do luar da minha terra,
Lá na serra branquejando,
Folhas secas pelo chão.
     - Última estrofe:
Se Deus me ouvisse
Com amor e caridade
Me faria essa vontade
O ideal do coração:
Era que a morte
A descantar me surpreendesse
E eu morresse numa noite
De luar do meu sertão. 

     Música: Talento e Formosura.
    Cantor: Paulo Tapajós.
    Poema:
     Início: 
Tu podes bem guardar os dons da formosura
Que o tempo, um dia, há de implacável trucidar.
Tu podes bem viver ufana de ventura
Que a natureza, cegamente, quis te dar.
Prossegue, embora em flóreas sendas, sempre ovante,
De glórias cheias no teu sólio triunfante,
Antes que a morte vibre em ti funéreo golpe seu
A natureza irá roubando o que te deu...
     Final:
Mas quando a morte conduzir-te à sepultura,
O teu supremo orgulho em pó reduzirá.
E após a morte profanar-te a formosura, 
Dos teus encantos mais ninguém se lembrará.
Mas quando Deus fechar meus olhos sonhadores,
Serei lembrado pelos bardos trovadores, 
Que os versos meus hão de na lira em magos tons gemer
E eu, morto embora, nas canções hei de viver...



     2 – Compositor: Cândido “Índio” das Neves.
     Música: Noite cheia de Estrelas.
     Cantor: Vicente Celestino.
     Poema: 
     Início:
Noite alta céu risonho;
A quietude é quase um sonho.
O luar cai sobre a mata
Qual uma chuva de prata
De raríssimo esplendor.
Só tu dormes, não escuta o teu cantor,
Revelando à Lua airosa
A história dolorosa desse amor...
     Final:
Lá no alto a Lua esquiva
Está no céu tão pensativa.
As estrelas tão serenas
Qual dilúvio de falenas
Andam tontas ao luar.
Todo astral ficou silente
Para escutar
O teu nome entre as endechas
As dolorosas queixas ao luar.

     Música: Última Estrofe.
     Cantor: Orlando Silva.
     Poema:
     Início: 
A noite estava assim enluarada
Quando a voz já bem cansada Eu ouvi de um trovador.
Nos versos que vibravam de harmonia
Ele em lágrimas dizia
Da saudade de um amor.
Falava de um beijo apaixonado, 
De um amor desesperado,
Que tão cedo teve fim...
     Final:
E a Lua que rondava a natureza,
Solidária com a tristeza,
Entre as nuvens se escondeu.
Cantor, que assim falas à Lua,
Minha história é igual à tua.
Meu amor também fugiu, 
Disse eu em ais convulsos.
E ele então, entre soluços,
Toda a estrofe repetiu. 


- Da segunda metade do século passado: 

Presenciei, nos anos 50, a intromissão das músicas norte-
americanas  em  nossa  cultura musical,  agitando  jovens  ouvintes,
que  passaram a dar maior  valor ao  que  vinha do  estrangeiro.  E,
realmente, foi um sucesso entre os da nova geração do pós-guerra.  
Lembro-me como sacudíamos o corpo ouvindo os primeiros
“Rock’n’Roll”  transmitidos  pelas  emissoras  de  rádio.  Como,  por
exemplo, a composição “Rock Around The Clock”, com “Bill Haley &
His  Comets”;  do  primeiro  divulgador  do  novo  ritmo,  Elvis  Presley,
introduzindo, inclusive, baladas; e muitos outros, do quais não me
recordo, com precisão, no momento. 
Do  Reino  Unido,  veio,  um  pouco  mais  tarde,  a  mais
famosa banda – os Beatles. 
Enfim,  foi uma  enxurrada de boas  e  péssimas  criações. A
nossa música popular foi sendo lentamente posta de lado. Já não se
escutava  sambas  e  choros  como  antigamente.  Grandes  nomes  do
cancioneiro nacional começavam a ser esquecidos.
 Com  o  passar dos anos,  o  lixo  cultural norte-americano
foi dominando a nossa fraca cultura; e, com isto, particularmente,
eu fui buscar, em outras áreas e em minhas raízes, a boa e eterna
música clássica erudita.
 Nesse  interregno, não posso deixar de mencionar a MPB,
que  se  esforçava  por  salvar  a  nossa  cultura;  dos  quais  um  nome
vem-me  a  lembrança  de  imediato:  Chico  Buarque,  com  suas
composições de protesto no último período ditatorial. Uma das que
mais admiro é “Construção”, que contem aqueles versos:
“Tijolo com tijolo  num  desenho  mágico”  e  “Tijolo  com  tijolo  num  desenho
lógico”;  onde  ligo  ao  meu  esforço  literário  para  construir  uma
poesia. 
Por  falar  em  música  clássica  erudita,  foi  na  minha
adolescência, que fiz o meu primeiro contato. Escutei, na vitrola de
um  vizinho,  a  reprodução  da  “Rapsódia  Húngara    2”  do
compositor Franz Liszt, que este ano está a completar 200 anos do
seu  nascimento    fiquei  profundamente  emocionado  e
transportando-me  em  espírito  àquelas  paisagens  do  século  XIX.  E
lhes adianto: até hoje.  No ano seguinte, logo após o almoço e quase
que  diariamente,  dirigia-me  à  casa  de  um  dos  meus  tios  para
escutar  a  suíte  sinfônica  “Sheherazade”,  do  compositor  russo
Rimsky Korsakov. Nas idas e vindas para a escola, eu ia cantando,
mentalmente, os compassos que mais me emocionavam. Aos vinte e
um  anos  de  idade,  tornei-me  sócio  da  Orquestra  Sinfônica
Brasileira, a fim de assistir aos domingos, no Theatro Municipal, os
Concertos  para  a  Juventude.  E  assim  fui  me  entrosando  com  a
música clássica erudita, a ponto de atualmente ter os meus rádios
receptores  sintonizados, exclusivamente, na MEC; e, por  favor, não
mexam nos sintonizadores. 
Tudo isto não significa que eu passei a repudiar a música
popular;  muito  pelo  contrário,  dou  valor  ao  que  é
comprovadamente bom e belo e culto. 
 Lembro-me de um comunicador – Flávio Cavalcante – que
quebrava  long-plays  que  continham  o  pior  das  produções
fonográficas.
 Percebo  que  o  único  modo  de  impedir  a  invasão  da
mediocridade é pela educação e desenvolvimento da sensibilidade
do  ser humano. Talvez, por  isto,  são nas comunidades carentes de
uma  formação elevada, é que a banalidade assenta suas raízes. E
apesar  desta  triste  corrente  cultural,  testemunho  com  alegria,  o
surgimento  de  jovens  oriundos  daquelas  comunidades,  a
executarem  instrumentos  musicais  clássicos  em  uma  orquestra
sinfônica. 
Bem, como  se diz na  fala popular:  “gosto não  se discute”.
Todavia, com licença dos demais, aqui estou manifestando sobre o
meu gosto e do que me causa prazer sublimado. 
Tenho dito! 

Em 30 de maio de 2011.

Samuel Kauffmann.

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