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segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Crônica do Dia

Inspirados no conto "O outro", de Jorge Luiz Borges, pedimos aos alunos que escrevessem contos ou crônicas em que se encontrassem com seus próprios eus em outras épocas. A leitura de hoje é um belíssimo conto do aluno Samuel, em reação à nossa proposta. Recomendamos a leitura deste conto e do que citamos anteriormente (aqui, o link do texto de Borges).

Aquele outro cara

Lúcio apressou o passo, sabendo, por antigos conhecidos, que a velha turma estava reunida algumas quadras adiante. Pesava sobre o seu emocional e mental um sentimento de culpa, por um fato acontecido há poucos meses. Não deseja ao seu adversário o autojulgamento atroz que o vinha arrasando. Nem com a esposa desabafara, com receio de ser mal compreendido. Na informalidade da reunião com os velhos colegas seria mais fácil falar.
 Era uma pachorrenta tarde de verão, em uma das praias da Região do Lagos; deitados à sombra de frondosa nogueira, os “amigos do mar” deleitavam-se com geladas cervejadas, quando o Lúcio apareceu e iniciou a narrar mais uma de suas histórias fantásticas, de homem muito viajado. Não que ele queira ser o centro das atenções, mas sua expressão ansiosa exprime a necessidade de desembuchar algo que lhe angustiava a mente e o coração.
Aquela galera se reunia há trinta e seis anos – nem sempre toda a turma. E, exatamente, o Lúcio foi o grande ausente durante a maior parte do tempo decorrido. Quando ele reapareceu diante dos amigos, sucedeu aquela festa pela surpresa de uma presença já esquecida.
Envolveram-no com perguntas, tais como: por onde andara e o que fez durante tanto tempo afastado; se estava casado e com quantos filhos; sobre o pai e a mãe e irmãos; sobre a saúde, etc. Como é comum a curiosidade dos humanos diante do inesperado reencontro.
Após alguns goles refrescantes, principiou a dar as informações solicitadas. Tinha percorrido quase toda a Região Sul e Sudeste deste país, em decorrência da profissão assumida – tornara-se, por essas sortes da existência, um Representante Comercial. Visitava com constância anual tanto os clientes como os fabricantes – estes em sua maioria lá pelo sul. Também com a responsabilidade de sustentar a família – atualmente são sete, incluindo ele. Pai e mãe já falecidos, restando os irmãos – quatro - cada qual no seu canto.
Foi quando um dos amigos disse:
- Pelas minhas lembranças, após o serviço militar, tu aspiravas seguir uma carreira acadêmica, pesquisador da robótica, da astrofísica, da energia nuclear, da teoria quântica e tantas outras coisas que dizias e já nem me lembro. Conte-nos o que te aconteceu, para abandonares assim os teus sonhos juvenis.
Dando-lhe a oportunidade de continuar, Lúcio respondeu:
- Dificuldades de sobreviver neste nosso meio social, da necessidade do dinheiro, meu amigo. Tranquei matrícula, prometendo-me retornar o quanto antes aos estudos almejados. No entanto os anos foram passando tão rápidos, que quando dei por mim três décadas lá se foram. Olho-me no espelho e vejo a imagem de um senhor de cabelos grisalhos, cujos sonhos e esperanças do conhecimento superior jazem sepultados. Venho correspondendo aos meus deveres familiares e nada mais. Contentando-me com apenas esta missão cumprida. Contudo, um vazio e uma frustração permanecem em meu coração, por não ter realizado aquelas aspirações do espírito.
Outro disse:
- Como tu és, agora, o caçula dentre nós, continue e satisfaça-nos o conhecer-te nos dias atuais.
Depois de mais uns goles da “geladinha”, Lúcio, já um pouquinho “alto”, prosseguiu:
- Se vocês, meus velhos amigos, estão a dar-me a vez de expor meus sentimentos, antecipadamente os agradeço. Espero não lhes aborrecer ou decepcioná-los, pois não são “histórias de pescador”. Nestes últimos dois anos, eu tenho encontros fortuitos com uma mesma e única pessoa, sempre. Como é natural, depois de nos vermos por algumas vezes, acabamos por nos apresentar. Observando-lhe a face - feição jovem e vigorosa - parecia-me alguém que não via há décadas. Uma lembrança vaga de um passado distante. Ocorreu-me ter visto, faz bastante tempo, a fotografia dos meus pais no dia do casamento – e era ali que a semelhança mais se acentuava. Cheguei a suspeitar que ele fosse um filho bastardo, resultado de algum adultério cometido pelo meu “velho”. Perguntei-lhe se me conhecia de qualquer outro lugar, ou se minha fisionomia lhe era familiar - respondeu-me que não. Insisti neste assunto e ele sempre negava, mas que sentia imenso prazer de estar em minha companhia.
 “No próximo encontro que tivemos, começamos por nos perguntar em qual atividade cada um de nós estava envolvido, propondo, assim, nos familiarizarmos melhor. Tomei a iniciativa de lhe falar de mim; da minha atividade profissional; dos meus gostos pessoais; dos livros que eram de minha preferência, dos que já tinha lido e outros que ainda estava por ler e constantes da minha biblioteca; dos meus long-plays; dos meus CDs atuais; dos meus filmes preferidos e de outros que ainda esperava ter a oportunidade de assistir, seja em casa ou nos cinemas, etc.
“Interrompeu-me o Luciano – este o nome com que se apresentara. O seu olhar demonstrava estar surpreendido e ao mesmo tempo interrogando-me sem palavras. Admirei-me quando perguntou o que eram CDs. Alegou que o meu discurso coincidia com muitas de suas aspirações existenciais, principalmente nos assuntos concernentes à riqueza dos conhecimentos superiores do espírito humano. Estava a se preparar para os exames vestibulares, que lhe dariam a chance de adquiri-los.
“Naquela noite, no hotel, rememorando o nosso encontro casual, achei estranho tal semelhança em pessoas de idades tão diferentes. Aos poucos fui relembrando que o meu pai costumava me chamar por aquele nome: ‘Luciano’; era o nome que queria com que eu fosse batizado, porém respeitou o desejo de minha mãe e ficou ‘Lúcio’. Eu já não me recordava com exatidão de minha fisionomia na juventude. Logo que pude estar em casa, busquei fotografias antigas, e grande foi o meu espanto quando vi o Luciano naquelas fotos de minha pessoa. Um arrepio desceu desde o alto de minha cabeça até aos pés. Excessivamente misterioso e sem explicação plausível. Não consegui dormir com tranquilidade. Acordei ansioso por um novo encontro; todavia não tinha como saber em que local e em que tempo ocorreria.
“Passados alguns meses, com aquela angústia oprimindo-me, tornei a encontrar o Luciano, em lugar e tempo inesperados. Ele também estava aflito, porque começou a se reconhecer em minha pessoa. Com o objetivo de identificação exata, perguntei-lhe pelo nome de seu pai e de sua mãe. Respondeu-me que o pai se chamava José e a mãe Cirene. De imediato disse-lhe que estes eram exatamente os nomes dos meus pais. Ficamos pálidos, simultaneamente.”
- Afinal, quem é você e quem sou eu? Somos a mesma pessoa existindo em tempos diferentes? – nos perguntamos.
“Então ele disse”:
- Você sou eu no futuro? É possível? Eu não quero ser você! Tenho sonhos que em você não se realizam. Por quê? Que maldição ou destino me aguarda? Se assim for, não quero mais existir. Quero uma grandeza que não vejo em você, um simples homem de negócios. Se tudo isso é verdade insofismável, quero desde já desaparecer, tornar-me névoa do passado.
“Antes que ele pudesse terminar, falei”:
- Não... Não, por favor, meu jovem amigo, vá vivendo a sua vida, percorrendo o seu caminho, assim como eu venho vivendo a minha e trilhando a minha senda...
- Impossível – interrompeu-me – não há como modificar os acontecimentos ocorridos no seu passado, que lhe fez chegar até aqui neste momento e como tal você se apresenta ante os meus olhos! Apenas peço-lhe que não lamente o que irás assistir. Adeus!
“Atônito, sem qualquer poder de argumentação, silenciei com lágrimas, sentindo em meu ser aquele jovem frustrado que não realizou suas ambições culturais e em quem elas não se efetivariam.
“Ante meu olhar aterrorizado, o Luciano, como possuidor de um poder de bruxo, fragmentou-se em pontos luminosos, absorvidos pela atmosfera envolvente; um fenômeno que talvez somente a física quântica pudesse esclarecer...
“Olhei em derredor, buscando um apoio ou uma ajuda, percebi que as pessoas nem se deram pela nossa presença - pois estava quase a desmaiar. Daquele fato somente eu estava consciente? Era ou não uma realidade? Ou seria uma projeção de meus malogros?
“Desde então o meu sentimento de frustração é enorme. Sinto-me um ser humano inacabado. Tomara que eu receba a graça de recomeçar ou de me renovar.
“Juro-lhes de pés juntos que o que acabo de contar realmente aconteceu. Se se trata de uma realidade objetiva ou subjetiva, isto eu não sei definir.”
Um pesado silêncio pousou sobre os presentes, por alguns minutos. Todos os olhares se concentravam no Lúcio. Possivelmente, crença ou dúvida se exprimiam naquelas faces.
O mutismo foi quebrado por um deles:
- Estou aqui pensando... Tu foste perseguido pelo teu próprio fantasma? Tens tido, por acaso, pesadelos constantes ou sonhos recorrentes?
Apartou outro:
- Não pode ser fantasma, cara! Lúcio não está morto – está aqui conosco! Ou então somos todos falecidos e nem o sabemos...
E outro:
- Que nada! Deve ter sido um desencarnado obsessor.
O segundo:
- Ora, não venhas com tuas teorias espíritas. Como ele mesmo disse, deve ter sido uma projeção do ego, de um modo bem mais concreto.
Um deles, mais próximo:
- Lúcio, eu te aconselho a procurar por um psiquiatra ou um Kabalista! Isto é, se queres paz contigo mesmo. Ninguém pode suportar viver deste modo.
Lúcio retomou a palavra:
- Meus prezados companheiros, eu agradeço de todo o coração as boas intenções com que todos vocês estão a me orientar. Acredito que somente o tempo há de curar as feridas da minha alma. Sinto-me aliviado do sentimento de culpa, porém persiste um sentimento de vergonha.  Agradeço por terem me escutado – já me aliviou bastante, embora não seja o assunto ideal para este momento. Sei que muitas dúvidas estão em suas mentes e não sou eu quem poderá dissipá-las. Amanhã pela manhã, bem cedo, estarei viajando a negócios. Bem, já está a anoitecer. Meus estimados amigos, adeus.
Lúcio abraçou a todos, um após outro. E lá se foi, em passos lentos, envolvido numa aura da qual somente ele tinha consciência. 

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