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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Crônica do dia


Hoje temos em mais um dia de postagem, temos o texto de Marcelo Coelho onde ele apresenta sua visão sobre o Edifício Master. DIVIRTAM-SE!   

EDIFÍCIO MASTER
"Sobre a alegria de cantar ‘My Way’", copyright Folha de S. Paulo, 11/12/02

"Há várias coisas inquietantes em ‘Edifício Master’, o documentário de Eduardo Coutinho sobre um prédio em Copacabana onde moram cerca de 500 pessoas, encapsuladas em 276 apartamentos do tipo kitchenette.
Claustrofobia, evidentemente, é uma das primeiras sensações que o filme provoca. Com certa insistência, Eduardo Coutinho mostra a própria equipe de filmagem se espremendo no elevador ou nos corredores do prédio antes de bater à porta de algum dos entrevistados.
Parece não haver muito espaço para a movimentação de tantas câmeras e refletores. E também não há espaço para todas as histórias e todas as emoções que cada pessoa tem para apresentar no breve depoimento, na aparição sem retorno, no trecho de vida que o documentário lhe concede.
Não é bem que o espectador consiga ‘espiar’, graças à câmera, aquilo que se passa dentro de cada apartamento ou da alma de cada morador. Não há em ‘Edifício Master’ voyeurismo ou invasão de privacidade. É mais o movimento inverso: como se a câmera fosse uma janela que os entrevistados, muitas vezes levando uma vida solitária e presos dentro de si mesmos, pudessem abrir para respirar.
Um aspecto curioso do filme, aliás, é que não se mostra nunca a fachada do edifício; estamos sempre ‘dentro’ dele -no máximo, acompanhamos pelos monitores dos guardas a chegada de visitantes na portaria, ou então vemos, de uma janela, outras janelas de outros apartamentos, num mundo sem horizontes, sem saída.
Impressiona como está presente, em diversos depoimentos, a ameaça ou a tentação do suicídio: depois de sofrer um assalto, uma senhora abre a janela, pensa em atirar-se. Desesperada com os ciúmes do marido, uma outra quase se jogou também.
Na primeira entrevista do filme, ficamos conhecendo uma mulher que morou a vida inteira no ‘Master’. Mudou inúmeras vezes de apartamento, pulou de um andar para outro, mas nunca saiu de lá. Ela conhece, claro, muitas histórias do edifício. A equipe de Eduardo Coutinho alugou um apartamento no prédio. Pois bem -a entrevistada hesita um pouco- nesse mesmo apartamento já houve uma tragédia.
A depressão atinge brutalmente uma jovem professora de inglês, que se fecha o quanto pode entre as paredes do apartamento. Outro morador, vítima de derrame, é salvo da morte pelo vizinho. E também há morte, simbólica ou fictícia, no depoimento de um ator aposentado, cuja carreira terminou no momento em que filmavam um assassinato com tiros de espoleta.
Mas o documentário de Eduardo Coutinho não é mórbido nem deprimente. O que ‘Edifício Master’ exerce sobre o espectador -e esse ponto já foi ressaltado, creio, por Inácio Araujo e Contardo Calligaris- talvez seja, antes de tudo, um efeito democratizante.
Podemos rir das esquisitices, das fraquezas, até do rosto ou das roupas deste ou daquele entrevistado; podemos nos comover com algumas histórias, sentir pena de muitos moradores, desdenhar de suas crenças, idéias ou preocupações. Há várias cenas no filme que não seria difícil classificar de patéticas, de pungentes, de ridículas. Sim, tudo isso é verdade, mas funcionaria se estivéssemos vendo o filme e seus personagens de um ângulo externo, à distância, ‘de fora’.
Mas, no momento em que estamos dentro da sala de cinema -ou melhor, ‘dentro’ do edifício Master-, cada entrevistado aparece para nós mostrando o que tem de mais valioso, de mais importante, de mais vital. Em cada depoimento, vibra, por assim dizer, uma convicção simples, sem palavras, que é a convicção da própria vida. Acima de todas as estranhezas, diferenças, vergonhas que possamos sentir uns com relação aos outros, é como se uma dignidade intensa e intocável se irradiasse de cada pessoa, quando esta se revela por inteiro.
É por isso, creio, que o clímax do filme é o momento em que um dos moradores, Henrique, canta entusiasticamente o sucesso ‘My Way’ de Frank Sinatra, sublinhando a idéia de que cada um vale pelo que é, do jeito que é. A cena a princípio me pareceu constrangedora, mas... como fiquei contente ao perceber que meu constrangimento ia acabando quanto mais alto o homem cantava! Deveríamos ter batido palmas naquele momento.
O documentário de Eduardo Coutinho parece ter concentrado, em cada uma de suas cenas curtas, tal ‘coeficiente de verdade humana’ -graus tão altos de temperatura e pressão existencial- que a gente sai do cinema num estado que é simultaneamente de exaltação e de humildade; o filme é claustrofóbico e libertador ao mesmo tempo.
Talvez seja essencial à democracia a sensação de que, sendo todos iguais, somos também totalmente diferentes uns dos outros. Sem dúvida, no edifício Master, estão em jogo não apenas diferenças individuais mas também de condição social, de idade, de educação.
O que há de ‘sociológico’ no filme pareceu-me, contudo, acessório diante do que se destaca ali de ‘humano’. Talvez porque, bem ou mal, o filme focalize a classe média, o que sempre facilita a identificação do espectador. Mas há muitas classes médias naquele mesmo barco, isto é, naquele mesmo prédio. De certa forma, o filme nos convence de que também moramos nele -e de que só morrendo a gente muda de endereço. Não sei se esta é uma conclusão muito verdadeira a tirar de um documentário; mas foi a minha."
Marcelo Coelho



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