Para terminar a semana, temos a crônica do aluno Samuel. Dessa vez, ele nos conta sobre sua relação com a música em si e critica seus caminhos no país. Bom fim de semana!!!
A Música e Eu
Reminiscências
Minhas relações com a música, até onde minha memória alcança,
iniciam-se com um fato que eu considero extraordinário.
Corria o ano de 1949, ou talvez o de 1950; tinha então
uns sete ou oito anos de idade. Sempre após o almoço, por volta das
treze horas, mamãe ligava o rádio, sintonizando a Rádio
Nacional, para escutar novelas radiofônicas, logo após o término
do “Repórter Esso” – famosíssimo. O fundo musical daquelas novelas
era sempre com a utilização dos clássicos do século XIX, mais do
que com os populares, com o objetivo de impressionar os ouvintes. E,
acreditem, conforme os enredos do radioteatro causavam mesmo
impactos - pelo menos comigo. Em uma das novelas, contando uma
história espírita, utilizaram o primeiro movimento de “Quadros de
uma Exposição”, após o “Promenade”, a pintura “Gnomus” – era
impressionante como nos levava a imaginação para “ver” o saltitar
das entidades grotescas. A música é do compositor russo Mussorgsky.
O mais importante é o que lhes passo a narrar: “Estavam
executando um solo de violino. Então, segurei um instrumento
invisível, apoiei-o em meu ombro esquerdo, firmei-o com o queixo,
com a mão direita sustentei o arco, também invisível, e comecei a
acompanhar o som que saia do radio, com movimentos de um
violinista exímio. Vejam bem, naquela época, ainda não havia
televisão; eu nunca tinha visto alguém tocar violino”. As conclusões
deste fenômeno, eu deixo por conta de vós outros.
Bem, quando meus genitores souberam do ocorrido,
resolveram presentear-me com um violino clássico, bem velho. A
mamãe logo providenciou para que eu tomasse aulas particulares
de piano – o que não tinha nada a ver – tanto que após a iniciação
musical acabei por rejeitar o piano. O papai procurou por um
professor de música versado no violino – uma dificuldade numa
cidade provinciana no interior do norte do Estado do Rio de
Janeiro – Campos dos Goitacás – que nem escola de música possuía.
Encontrou um alfaiate que se dispôs a ensinar-me. Logo no início,
ele percebeu que eu precisava educar, tecnicamente, a audição.
Orientou-nos para tomar aulas de solfejo, indicando uma igreja
protestante que estava a formar um orfeão com jovens de boa voz.
Fui matriculado e comecei a participar das aulas de solfejo. O
professor era bom e paciente. Ensinou-nos a ler a pauta musical.
O difícil era ler a nota e emitir o som correto – este era o objetivo do
cursinho. Um dia, já estava anoitecendo, logo após o término da
aula, o maestro pediu-me para não ir embora, pois o Pastor queria
conversar comigo. Aguardei por bem mais de meia hora, até que o
Pastor requereu a minha entrada no templo. Encontrei um grupo
de senhores de terno preto que olhavam para mim com
curiosidade. Começaram por fazer perguntas que até a presente
época não consigo ter plena compreensão, pois nada tinha a ver
com o meu interesse de aprender a tocar violino. O final da
conversa tinha a intenção de me converter àquela religião e ser
batizado. Hoje, julgo uma coação com uma criança de apenas oito
anos de idade. Acabei por chegar a casa, após uma caminhada de
vinte minutos, por volta das dezenove horas. Minha mãe já estava
aflita e angustiada; e eu muito mais do que ela. Consequência:
nunca mais coloquei os pés naquela escolinha, sufocando uma
provável carreira musical.
Passado alguns poucos anos, eu já com treze anos de
idade, esquecido de qualquer vocação musical, testemunhei o
interesse de minha irmã por aprender o acordeão, que estava em
moda naqueles idos. Geralmente as moças das classes mais
abastadas optavam pelo piano. Como este tem custo elevadíssimo,
ficou mesmo com a sanfona. Todavia a maninha não se
entusiasmou o bastante para a continuidade dos estudos; acabei
por demonstrar o meu interesse musical nato e fiquei senhor do
instrumento por alguns anos – creio que até a véspera do serviço
militar (a partir daí nunca mais toquei no acordeão). Tomava
aulas particulares com uma professorinha muito paciente e
naturalmente simpática. Eram aulas práticas, que me
possibilitavam executar as musicas lendo a pauta. Uma das que
mais me encantou foi o tango “La Cumparsita ”. Outra era uma
canção russa intitulada “Olhos Negros”, que meu saudoso vovô
cantarolava em russo – ele era polonês e servira no exercito do Czar
durante a primeira grande guerra. Havia também uma valsa com
o titulo “Danúbio Azul”, resumida em poucos compassos. Enfim,
estou lhes expondo o meu contato com a música universal – um
encanto mágico.
Desde criança e durante a adolescência e juventude,
minha atenção se prendia ao que hoje podemos intitular de
clássicos populares. Não somente pelas belas melodias como também
pelas letras extremamente poéticas e, também filosóficas, das quais
darei alguns exemplos, que a atual geração talvez nem tenha
conhecimento. Vejamos:
- Da primeira metade do século passado:
1 – Compositor: Catulo da Paixão Cearense
Música: Flor Amorosa
Cantor: Francisco Carlos
Poema:
1ª estrofe:
Flor amorosa, compassiva, sensitiva,
Vem; porque
É uma rosa orgulhosa, presunçosa,
Tão vaidosa.
Pois olha a rosa tem prazer em ser beijada,
É flor, é flor...
- Última estrofe:
Oh, por que juras mil torturas,
Mil agruras, por que juras?
Meu coração delito algum por te beijar
Não vê, não vê, só por um beijo,
Um gracejo, tanto pejo.
Mas por quê?
Música: Luar do Sertão.
Cantor: Paulo Tapajós.
Poema:
1ª estrofe:
Não há, ó gente, oh não
Luar como este do sertão...
Oh que saudade do luar da minha terra,
Lá na serra branquejando,
Folhas secas pelo chão.
- Última estrofe:
Se Deus me ouvisse
Com amor e caridade
Me faria essa vontade
O ideal do coração:
Era que a morte
A descantar me surpreendesse
E eu morresse numa noite
De luar do meu sertão.
Música: Talento e Formosura.
Cantor: Paulo Tapajós.
Poema:
Início:
Tu podes bem guardar os dons da formosura
Que o tempo, um dia, há de implacável trucidar.
Tu podes bem viver ufana de ventura
Que a natureza, cegamente, quis te dar.
Prossegue, embora em flóreas sendas, sempre ovante,
De glórias cheias no teu sólio triunfante,
Antes que a morte vibre em ti funéreo golpe seu
A natureza irá roubando o que te deu...
Final:
Mas quando a morte conduzir-te à sepultura,
O teu supremo orgulho em pó reduzirá.
E após a morte profanar-te a formosura,
Dos teus encantos mais ninguém se lembrará.
Mas quando Deus fechar meus olhos sonhadores,
Serei lembrado pelos bardos trovadores,
Que os versos meus hão de na lira em magos tons gemer
E eu, morto embora, nas canções hei de viver...
2 – Compositor: Cândido “Índio” das Neves.
Música: Noite cheia de Estrelas.
Cantor: Vicente Celestino.
Poema:
Início:
Noite alta céu risonho;
A quietude é quase um sonho.
O luar cai sobre a mata
Qual uma chuva de prata
De raríssimo esplendor.
Só tu dormes, não escuta o teu cantor,
Revelando à Lua airosa
A história dolorosa desse amor...
Final:
Lá no alto a Lua esquiva
Está no céu tão pensativa.
As estrelas tão serenas
Qual dilúvio de falenas
Andam tontas ao luar.
Todo astral ficou silente
Para escutar
O teu nome entre as endechas
As dolorosas queixas ao luar.
Música: Última Estrofe.
Cantor: Orlando Silva.
Poema:
Início:
A noite estava assim enluarada
Quando a voz já bem cansada Eu ouvi de um trovador.
Nos versos que vibravam de harmonia
Ele em lágrimas dizia
Da saudade de um amor.
Falava de um beijo apaixonado,
De um amor desesperado,
Que tão cedo teve fim...
Final:
E a Lua que rondava a natureza,
Solidária com a tristeza,
Entre as nuvens se escondeu.
Cantor, que assim falas à Lua,
Minha história é igual à tua.
Meu amor também fugiu,
Disse eu em ais convulsos.
E ele então, entre soluços,
Toda a estrofe repetiu.
- Da segunda metade do século passado:
Presenciei, nos anos 50, a intromissão das músicas norte-
americanas em nossa cultura musical, agitando jovens ouvintes,
que passaram a dar maior valor ao que vinha do estrangeiro. E,
realmente, foi um sucesso entre os da nova geração do pós-guerra.
Lembro-me como sacudíamos o corpo ouvindo os primeiros
“Rock’n’Roll” transmitidos pelas emissoras de rádio. Como, por
exemplo, a composição “Rock Around The Clock”, com “Bill Haley &
His Comets”; do primeiro divulgador do novo ritmo, Elvis Presley,
introduzindo, inclusive, baladas; e muitos outros, do quais não me
recordo, com precisão, no momento.
Do Reino Unido, veio, um pouco mais tarde, a mais
famosa banda – os Beatles.
Enfim, foi uma enxurrada de boas e péssimas criações. A
nossa música popular foi sendo lentamente posta de lado. Já não se
escutava sambas e choros como antigamente. Grandes nomes do
cancioneiro nacional começavam a ser esquecidos.
Com o passar dos anos, o lixo cultural norte-americano
foi dominando a nossa fraca cultura; e, com isto, particularmente,
eu fui buscar, em outras áreas e em minhas raízes, a boa e eterna
música clássica erudita.
Nesse interregno, não posso deixar de mencionar a MPB,
que se esforçava por salvar a nossa cultura; dos quais um nome
vem-me a lembrança de imediato: Chico Buarque, com suas
composições de protesto no último período ditatorial. Uma das que
mais admiro é “Construção”, que contem aqueles versos:
“Tijolo com tijolo num desenho mágico” e “Tijolo com tijolo num desenho
lógico”; onde ligo ao meu esforço literário para construir uma
poesia.
Por falar em música clássica erudita, foi na minha
adolescência, que fiz o meu primeiro contato. Escutei, na vitrola de
um vizinho, a reprodução da “Rapsódia Húngara nº 2” do
compositor Franz Liszt, que este ano está a completar 200 anos do
seu nascimento – fiquei profundamente emocionado e
transportando-me em espírito àquelas paisagens do século XIX. E
lhes adianto: até hoje. No ano seguinte, logo após o almoço e quase
que diariamente, dirigia-me à casa de um dos meus tios para
escutar a suíte sinfônica “Sheherazade”, do compositor russo
Rimsky Korsakov. Nas idas e vindas para a escola, eu ia cantando,
mentalmente, os compassos que mais me emocionavam. Aos vinte e
um anos de idade, tornei-me sócio da Orquestra Sinfônica
Brasileira, a fim de assistir aos domingos, no Theatro Municipal, os
Concertos para a Juventude. E assim fui me entrosando com a
música clássica erudita, a ponto de atualmente ter os meus rádios
receptores sintonizados, exclusivamente, na MEC; e, por favor, não
mexam nos sintonizadores.
Tudo isto não significa que eu passei a repudiar a música
popular; muito pelo contrário, dou valor ao que é
comprovadamente bom e belo e culto.
Lembro-me de um comunicador – Flávio Cavalcante – que
quebrava long-plays que continham o pior das produções
fonográficas.
Percebo que o único modo de impedir a invasão da
mediocridade é pela educação e desenvolvimento da sensibilidade
do ser humano. Talvez, por isto, são nas comunidades carentes de
uma formação elevada, é que a banalidade assenta suas raízes. E
apesar desta triste corrente cultural, testemunho com alegria, o
surgimento de jovens oriundos daquelas comunidades, a
executarem instrumentos musicais clássicos em uma orquestra
sinfônica.
Bem, como se diz na fala popular: “gosto não se discute”.
Todavia, com licença dos demais, aqui estou manifestando sobre o
meu gosto e do que me causa prazer sublimado.
Tenho dito!
Em 30 de maio de 2011.
Samuel Kauffmann.
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