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quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Crônica do Dia

Hoje temos uma crônica muito especial, nela as memórias de infância do aluno Samuel trazem duas pessoas muito importantes para ele: os avós. Aproveitem a leitura e emocionem-se! 

Meus amados avós

Participei de uma reunião em que se expunham as relações humanas no âmbito familiar, principalmente direcionada para a figura dos avós. Permaneci em silêncio, tomado de surpresa pela questão levantada, procurando lembrar-me do meu convívio com o meu querido e saudoso vovô materno, bem como com a minha meiga e carinhosa vovó. Não tive a felicidade de conhecer os do lado paterno, porque meu pai ficou órfão ainda criança.
Residi com eles durante a minha infância até aproximadamente uns nove anos de idade, ou até dez anos incompletos. Depois mudamos para outra rua na mesma cidade. Por mais uns dois anos, eles ainda continuaram morando na mesma cidade, antes de se mudarem aqui para o Rio de Janeiro. Nós continuamos residindo naquela cidade por mais três anos, até que o meu pai decidiu tentar a sorte por aqui.
Meu contato físico com os meus avós começou a escassear por estarmos morando em ruas diferentes. Daí a dificuldade de lembranças vívidas. Memórias de momentos comuns e corriqueiros e diários são as mais difíceis de se reter. Porém, quando ocorre um movimento turbulento nas relações humanas, é que retemos em nosso emocional as lembranças, sejam essas memórias de acontecimentos felizes ou não. Talvez , se não fosse um egocentrismo natural durante o meu desenvolvimento, teria recordações bem mais nítidas das que neste momento me ocorrem com dificuldade.
Da vovó, recordo-me de sua figura bondosa e sempre preocupada comigo, seu neto primogênito muito arteiro. Ela tinha dificuldade de comunicar-se com outras pessoas, por não ter tido facilidade de aprender português - falava bem o polonês. No entanto, nós conseguíamos nos entender em tudo o que envolvia minhas necessidades básicas. Muito religiosa, seguia um rito na alimentação. Somente comia carne das aves abatidas por um senhor, também religioso. Eu, sempre que tinha oportunidade, observava como aquele homem matava as aves, que eram criadas no quintal. Comecei a ponderar, por falta de entendimento mais profundo, que as pobres aves sofriam muito até que morressem. E tanto falei e argumentei, em minha inocente ignorância, que resolvi eu mesmo matar uma das aves a ser preparada para o almoço. Tomei uma machadinha e decepei a cabeça da ave, que saiu correndo por alguns metros, sem a cabeça, para espanto geral da família presente, e, particularmente, para o meu próprio terror - para aquela cena tétrica eu não estava preparado. Aquela galinha não foi aproveitada na cozinha da vovó - foi dada à cozinheira para levar para casa. Fora esse acontecimento,  recordo-me da vovó em finais de semana rezando todo o livro de Salmos, em um único dia - era sua única ocupação aos sábados.
E quanto ao vovô? Como a maioria dos europeus, era um tanto fechado, pouco dado a manifestações sentimentais. Contudo, em relação a mim, sentia da parte dele um grande afeto, com certeza por ser o neto mais velho. Nas noites quentes de verão, ficávamos no jardim até um pouco mais tarde. Ele, sentado numa cadeira de balanço, modelo austríaco de madeira vergada, colocando-me em seu colo, cantarolava canções melodiosas em russo, ou dava aulas de Geografia e História, assuntos de seu máximo interesse, era um autodidata. Fazia um esforço intelectual para responder às minhas perguntas com a maior clareza que lhe fosse possível, até que eu dissesse: "estou entendendo". Talvez seja por isso a minha preferência por tais matérias e também pelas canções russas do século XIX. Tais influências ficam agregadas em nosso subconsciente.
Recordo-me dos jantares na semana da Páscoa, com a família reunida, ele lendo a Bíblia, narrando o Êxodo - e com que seriedade, como se nós também tivéssemos participado daquele acontecimento milenar. Era um jantar seguindo uma ordem de serviço, de grande beleza e pratos especiais. Nestas noites, ele permitia que eu bebesse um pouco de vinho doce. A baixela, os pratos e os talheres, que ele conservava com máximo zelo, eram exclusivos para tais noites. Era um homem bondoso e caridoso, apesar de o meu pai o acusar de jogador viciado - bem, ninguém é perfeito.
Certa feita, eu entrei de surpresa em seu escritório, encontrei-o segurando algumas cartas que chegaram do exterior, pouco após o término da Segunda Grande Guerra - lágrimas corriam pela sua face. Narravam o desaparecimento de parentes bem chegados. Não me disse nada além disso - guardou em seu íntimo a dor que lhe sufocava, evitando que eu me envolvesse com tais assuntos, que estavam além do entendimento de uma criança. Foi zeloso com os meus sentimentos infantis. Sempre que possível, orientava-me sobre a vida, o meio ambiente, cuidados com a natureza etc. Um dia, ao ver-me jogando fora folhas de papéis pautados, já escritos no anverso, com o verso limpo, disse, com a seriedade que lhe era peculiar: "Neto, isto que tens em tuas mãos já foram árvores vivas. Não desperdice; use o outro lado do papel." Até hoje, não deixo de usar os dois lados das folhas, seja à mão ou na impressora. Quando sobrava pão do dia anterior, ele cortava em rodelas bem finas para fazer torradas - que nós aproveitávamos no lanche da tarde, degustando-as com manteiga.
Eu era um neto travesso, como disse anteriormente. O vovô era um mascate. Num dos últimos invernos em que ainda morava com ele, fiz mais uma travessura imperdoável. Estavam guardados no escritório muitos sobretudos de uso feminino. Eu estava envolvido com jogo de futebol de botões. E os botões daqueles sobretudos eram feitos de osso ou chifre - que eram os melhores para serem preparados para o jogo. Aproveitando-me de sua ausência durante o dia, retirei alguns botões de vários tamanhos - um ou dois de cada uma das vestimentas. Para falar a verdade, foi cometido um roubo que prejudicou a apresentação da mercadoria. Rapidamente descobriram o autor do pecado. Apesar dos meus temores, não fui severamente censurado pelo avô, mas sim pela mamãe. Após os sermões diários e períodos de castigo, fui perdoado por todos - e nunca mais repeti a façanha, bem como deixei de jogar futebol de botões.
Depois de crescido, na adolescência e na juventude, fui me afastando do convívio dos meus avós. Não diria ser uma indiferença, pois continuava amando-os, respeitando-os; buscava sempre o vovô para os conselhos e lições de vida, que a sabedoria acumulada em sua existência me proporcionava adquirir; por minha vez, esses conhecimentos vieram auxiliar-me no amadurecimento através dos anos vividos. Hoje, lembro-me dele com quase veneração, agradecido ao Universo por tê-lo conhecido.
Meus filhos não receberam a graça de ter conhecido o bisavô e a bisavó.

Samuel Kauffmann

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